O Frevo é Negro!

Paço do Frevo
3 min readNov 27, 2019

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Por Vanessa Marinho, coordenadora de Conteúdo do Paço do Frevo.

Diante de uma ideia que diz ser o povo brasileiro o produto heterogêneo da mistura de, basicamente, três grupos étnicos — europeus, africanos e povos nativos — por muito tempo houve uma crença de que a identidade brasileira era, essencialmente mestiça. Porém, mais recentemente, determinados segmentos da sociedade tem buscado seu espaço dentro dessa memória histórica, e, por isso, algumas pautas vieram à tona, com o intuito de mostrar a presença dos segmentos sociais “minorizados” de forma mais positiva, e, portanto, mas justa.

Este entendimento de miscigenação que recai sobre a sociedade brasileira, de forma mais geral, se observa também em algumas expressões da cultura popular, tal como o Frevo. Historicamente, o período em que o Frevo e o carnaval de rua atraiu os olhares de pesquisadores do campo das ciências sociais — área do conhecimento que trata destas questões — coincide com o período em que a afirmação dessa mestiçagem ganhou destaque no discurso do poder público. Porém, este discurso oficial tinha como pano de fundo o arrefecimento da presença negra na sociedade brasileira, que seria uma possível justificativa para o atraso que se acreditava ter no país.

Este contexto histórico afetou o Frevo de tal modo que uma das primeiras publicações sobre o tema, escrita em 1948 pelo pesquisador e folclorista Waldemar de Oliveira, trouxe a seguinte afirmação:

“As raízes do frevo e do passo são muito superficiais. Não são como as do maracatu, que mergulham na escravidão. Nem como as dos caboclinhos, que vêm dos tempos dos colonizadores, sabe-se lá. Nem negro, nem índio, nem branco luso, espanhol ou holandês. Se se tivesse de despistar a filiação genealógica, avós e pais apareceriam bem mestiços. Mulatos.”

Apesar de a afirmação vir de alguém que é considerado referência para os estudos sobre o Frevo, sabe-se hoje que o Frevo é, em sua essência, negro.

Negro, graças aos capoeiras que, como estratégia de resistência, transformaram a luta em dança com o intuito de poder executar seus movimentos sem serem reprimidos pelas forças policiais daquele contexto; negro, graças ao povo que brincava nas ruas do centro do Recife, que, uma vez que foram “varridos” para as periferias, aproveitavam o carnaval para ocupar as áreas centrais da cidade com mais liberdade; negros pelos músicos que executavam músicas com influências europeias, mas que traziam a negritude na pele.

A presença negra no Frevo se faz mais visível quando pensamos em alguns ícones que compõem essa história: músicos, passistas, maestros e compositores, sem contar com as agremiações oriundas de categorias de trabalhadores, que, devido ao contexto histórico, sabe- se que eram formados por homens e mulheres com ascendência africana. Verdureiras de São José, Abanadores do Arruda, Lavadeiras de Areias e outras agremiações destacam esse lugar social e racial, dentro do universo do Frevo.

Talvez o exemplo mais emblemático desta relação entre o Frevo e a negritude esteja no mais famoso Frevo de todos os tempos: o Hino n. 1 de Vassourinhas. Composto no final do século XIX por Joana Batista e Matias da Rocha, recentemente foi objeto de uma investigação mais aprofundada, visto que, a presença de Joana Batista como compositora do Hino ainda era desconhecida. Uma música tão conhecida, tocada e apreciada por tanta gente, há tantos carnavais, composta por uma mulher negra? Improvável, mas não impossível.

Depois de Joana e Matias, nomes como o de Egídio Bezerra e Zenaide Bezerra, Coruja, João Santiago, Mário Chaves, Nascimento do Passo, Edson Rodrigues, Amaro Freitas e tantos outros artistas do Frevo reforçam uma memória histórica que nunca deveria ter sido preterida, e que nos ajudam a mantê-la viva e afirmar que, sim, o Frevo é Negro!!

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Paço do Frevo

Espaço dedicado à difusão, pesquisa, lazer e formação nas áreas da dança e música do frevo, visando propagar sua prática para as futuras gerações.